Teresa Mergulhão

Palavras e imagens no livro para crianças: a poética do deslumbramento

Teresa Mergulhão

Escola Superior de Educação de Portalegre

(termerg@gmail.com)

 

Resumo: No álbum para crianças, o diálogo intersemiótico entre a linguagem verbal e a icónica contribui para a instauração de uma atmosfera poética que fascina e provoca deslumbramento, estimulando a sensibilidade, a imaginação, a capacidade imagética e a competência leitora do potencial receptor infantil. Nesse sentido, e partindo da apreciação crítica dos álbuns Um Avô Inesquecível, de Bette Westera, e OLivro da Avó, de Luís Silva, pretendo sublinhar o valor artístico e metafórico das duas linguagens que harmonicamente se complementam e se interseccionam nestes dois livros para crianças - a verbal e a gráfico-plástica.

Palavras-chave: ilustração, literatura para crianças, diálogo intersemiótico.

 

Abstract: In the album for children, the intersemiotic dialogue between the verbal and the iconic languages contributes to the creation of a poetic atmosphere which fascinates, stimulating the sensibility, imagination, imagery ability and the reading competence of young (pre) readers. Given this, and based on the critical assessment of Um Avô Inesquecível, written by Bette Westera, and O Livro da Avó, written and illustrated by Luís Silva, it is my purpose to emphasise the artistic and the metaphorical value of  two languages that coexist and intersect themselves in these two children’s books – the verbal and the graphic-plastic.

Key Words: illustration, children’s literature, intersemiotic dialogue.

 

No respeito pela inteligência e pela sensibilidade da criança (pré)leitora, cada vez mais a literatura infantil declina temas tradicionalmente considerados tabu. A morte, outrora arreigada do universo dos livros especificamente endereçados ao público infantil, ou sujeita a abordagens eufemísticas e fantasiosas que pretendiam desviar a curiosidade das crianças de uma realidade dura e incompreensível, tem adquirido, nas últimas décadas, uma atenção redobrada da parte de escritores e ilustradores que, fazendo uso da sua arte, constroem universos efabulatórios e pictóricos onde o tema é abordado de forma extremamente delicada e emotiva.

Os dois livros aqui em análise – Um Avô Inesquecível, escrito por Bette Westera e ilustrado por Harmen van Straaten, e O Livro da Avó, do autor e ilustrador português Luís Silva – partem justamente desse tema central e aglutinador para, de uma forma sensível e comovente, abordarem semanticamente eixos temáticos afins, como a saudade, os afectos, a tristeza e a dor da perda.

Assim, Um Avô Inesquecível é um álbum narrativo de grande beleza plástica e literária, que aborda poeticamente a temática da perda. Na verdade, a harmonia e a complementaridade entre os dois códigos – linguístico e visual – contribuem para a criação de uma atmosfera poética que permite percepcionar este magnífico álbum narrativo para crianças como um objecto estético de grande qualidade.

Pese embora a existência dessa atmosfera poética potenciada pela coesão intersemiótica entre texto e imagens, o recurso (sem subterfúgios) a um léxico associado à área semântica da morte – funeral, caixão, cova – institui-se de certo modo como inesperado e desconcertante, mas tem o mérito de assim se demonstrar ao potencial receptor infantil que a morte é uma inevitabilidade – como inevitável é o profundo sofrimento que provoca nos que vêem partir os que mais amam.

As ilustrações a sépia que percorrem grande parte do livro acentuam precisamente o vazio afectivo e existencial que a morte do avô provoca na criança aturdida e sem capacidade de reacção, como se a vida tivesse perdido momentaneamente a cor, como se as emoções toldassem o espírito de quem, por esse motivo, não consegue ter do real mais do que uma visão desfocada, parcelar e fragmentada. A técnica da aguarela permite justamente esbater contornos, diluir as formas e conferir à narrativa visual um tom impressionista que convida o leitor a atribuir sentidos plurais à composição plástica que se lhe oferece ao olhar. No entanto, o lenço vermelho-sangue, contrastando com a neutralidade do tom sépia dominante, é o sinal de que a vida continua e de que os afectos perduram muito para além da partida daqueles que mais amamos.

Estruturalmente, a narrativa obedece a um esquema tripartido, iniciando com o diálogo entre a criança e a mãe a propósito da morte do avô, seguindo-se a evocação (em analepse e pela focalização omnisciente do narrador) de episódios que marcaram a relação de afecto e cumplicidade entre avô e neto, para finalizar com a aceitação da morte, por parte da criança, que encontra, nesse seu percurso interior, motivos para voltar a sorrir.

Na verdade, desde o início da narrativa, a personagem infantil deste magnífico álbum debate-se interiormente com sentimentos contraditórios que atestam a sua revolta e o seu inconformismo, sendo necessária a intervenção da mãe para atenuar a dor da perda e lhe devolver momentaneamente o sorriso. Na verdade, João recusa inicialmente deixar o espaço íntimo da sua privacidade porque é lá que ainda se encontra o corpo já sem vida do avô e a criança não quer (ou não pode) abandoná-lo: “Eu não vou (…). Vou ficar aqui, com o avô”. Essa atitude sinaliza a recusa da criança em aceitar a morte do avô, sendo claro o desejo (utópico) de permanecer para sempre (literal ou metaforicamente) a seu lado.

O deíctico “aqui” é transformado num ambiente íntimo e familiar na ilustração que o representa e interpreta: um ambiente rodeado de objectos que o leitor presume terem pertencido ao avô – a secretária ainda aberta, um relógio de pulso, uma caneta, um tinteiro e a poltrona, onde a criança, desamparada e só, se aninha como se pedisse protecção. Altamente produtivo do ponto de vista semântico é o facto de a figura materna, presente no texto verbal, ser simplesmente elidida da ilustração, conferindo-se desta forma o protagonismo visual à criança para demonstrar o estado de profundo desamparo afectivo em que esta se encontra, rodeada apenas dos objectos que lhe fazem ainda manter intacta a memória do avô. No fundo, a criança não consegue (ou não quer) desligar-se dos objectos para assim se sentir fisicamente mais próxima do seu avô inesquecível.

Poder-se-á ainda afirmar que esse mesmo espaço familiar que acolhe no presente o corpo sem vida do avô e onde a criança se sente profundamente triste e desamparada foi, num tempo irremediavelmente perdido, um espaço de alegria e cumplicidades, pelo que não surpreende que esse seja o espaço em que a criança se sente afectiva e simbolicamente mais próxima do seu avô.

Contudo, a intervenção da mãe, que, sem qualquer tipo de complacência ou de eufemismos, lhe diz “Não pode ser (…). O avô morreu”, obriga involuntariamente a criança a enfrentar a morte, mesmo que a reacção emotiva ulterior da criança seja o choro compulsivo, tal como poeticamente se percebe pela voz do narrador: “As lágrimas ardiam-lhe nos olhos”. Essa exteriorização da dor atesta, e em definitivo, a aceitação de uma evidência – a morte do avô –, mas não ainda a superação do trauma.

Porém, a intervenção da mãe não se limita a confrontar a criança com a dura realidade, uma vez que é ela quem a ajudará a enfrentar e a ultrapassar a tristeza e o vazio que o desaparecimento do avô lhe provocou no mais profundo do seu ser, oferecendo-lhe um lenço – o lenço do avô. No fundo, esse objecto pessoal e íntimo surge como forma de ligação entre o passado e o presente, dando continuidade simbólica e, de certo modo, física a essa relação afectiva tão especial entre avô e neto. O lenço servirá de pretexto para evocar, através da voz do narrador omnisciente (e em analepse), as brincadeiras e cumplicidades entre ambos, contribuindo, de certa forma, para o apaziguamento da dor.

A ilustração, jogando com o contraste cromático entre o tom sépia dominante e o vermelho rubro do lenço, reveste-se aqui de uma enorme relevância, complementando e enriquecendo o texto verbal, preenchendo e ampliando os sentidos propositadamente deixados em suspenso pelo código linguístico-literário.

A segunda parte da obra é preenchida com a rememoração das brincadeiras entre avô e neto, servindo de pretexto para testemunhar a afectividade e a cumplicidade entre ambos mas também a personalidade irreverente de um avô muito especial que, contrariamente aos outros adultos, e à revelia das suas imposições, é capaz de brincar aos cowboys e aos piratas, um avô que contraria as normas instituídas e que gosta de batatas fritas, de sanduíches com muita manteiga de amendoim e montes de compota.

Nas aguarelas que acompanham, completam e interpretam o texto verbal, o lenço vermelho funciona como elemento unificador da narrativa visual, contrastando com o tom sépia que perpassa o livro. As opções ilustrativas de van Straaten passam igualmente pela representação icónica, nesta parte da obra, de um gato (não referido pelo código escrito) que funciona como cúmplice secreto das travessuras entre avô e neto, o que demonstra que a ilustração não é uma mera tradução ou repetição do legível. Pelo contrário, a ilustração interpreta, ilumina, complementa e enriquece o texto verbal, “fazendo-o respirar e estabelecendo com ele uma inter-relação dialogal que facilit[a] a instauração de uma atmosfera de verdadeira pregnância significativa” (Mergulhão, 2008: 2), como defendi noutro lugar.

A última parte da obra retoma o presente e, nela, a criança acompanha o funeral até ao cemitério, embora (pela voz do narrador omnisciente, e em discurso indirecto livre) se questione sobre a forma como os crescidos participam no cortejo fúnebre: “João não sabia que os crescidos podiam andar tão devagar. Nas ruas da cidade andavam sempre a correr…”. Ao olhar para o caixão, a criança sente que há tantas coisas que gostaria de perguntar ao avô, porque, como se percebe pelos não-ditos, as respostas dos crescidos não o satisfazem. Por isso, interpela mentalmente o avô, a única pessoa em quem realmente confiou em toda a sua ainda curta existência: “Quem é que está certo, avô?”.

Quando o corpo do avô desce à cova, João recusa deitar terra para cima do caixão e não consegue evitar as lágrimas, mas a mãe, sempre atenta, oferece-lhe de novo o lenço do avô: “Toma, é para ti (…). Dá-lhe um grande nó”. Ora, o avô tinha o hábito de dar um nó no seu lenço para não se esquecer de nada. Por isso, ao dar o nó no lenço do avô, a criança garante que nunca mais se esquecerá do seu avô e que, assim sendo, os laços entre ambos são indestrutíveis, por toda eternidade.

Em estreita articulação semântica com o álbum de Westera, O Livro da Avó pode igualmente ser percepcionado como um álbum de enorme riqueza plástica e literária sobre a perda, embora divirja do livro anterior essencialmente pela representação temporal dos factos (aqui evocados pela memória subjectiva do narrador) e pela focalização adoptada (narração autodiegética).

Na realidade, neste belíssimo álbum de invulgares dimensões, o narrador adulto, provável figura especular do autor, socorre-se de um registo pessoal e intimista para, em analepse, evocar a avó há muito desaparecida e expressar a profunda saudade que o tempo não diluiu. A projecção autobiográfica no narrado é, aliás, assumida pelo autor/ilustrador, ao afirmar, em entrevista recente: “(…) o principal "motor" da sua [do livro] composição foi o exercício de expor uma parte da minha vida em que a minha avó ocupou um lugar central (…)”[1].

Tal como sucede no álbum de Westera, O Livro da Avó tem como eixos temáticos aglutinadores a morte e a saudade. No entanto, ao contrário de Um Avô Inesquecível, em que uma criança é confrontada com a morte recente do avô, na obra de Silva, como se refere intratextualmente, “muitos anos passaram” desde o desaparecimento da avó. Ainda assim, o tempo não conseguiu apagar as memórias de um sujeito textual que assume, no presente, continuar a sentir a falta dessa avó tão especial, o que significa que a dor da perda persiste, apesar do fosso temporal que separa o antes e o agora.

Do ponto de vista da estrutura técnico-compositiva, é interessante referir que a narrativa inicia evocando as palavras longínquas da avó, que, um dia, dirigindo-se ao neto, lhe disse “Fazes-me falta”. Tais palavras ecoam ainda na memória subjectiva do narrador, a tal ponto que é com elas que se fecha a narrativa (embora sejam desta vez pronunciadas pelo neto-adulto e endereçadas a esse ser ausente e fantasmático que a saudade insiste em presentificar).

Graficamente, a frase surge transcrita em caracteres de grande dimensão, ocupando a totalidade da página em branco que dá por concluída a narrativa. Rompendo com a sequência verbal e icónica até então dominante – código linguístico na página da esquerda, ilustração na da direita –, numa estratégia semionarrativa que desconcerta o leitor pela imprevisibilidade de que se reveste, a última página do livro, dispensando a imagem, funciona como um grito do sujeito – um grito que atesta a dimensão do seu afecto e da saudade pela avó há muito desaparecida.

Para além dessa particularidade em termos de arquitectura narrativa, há a assinalar o facto de uma parte considerável da obra se apoiar no registo retrospectivo para evocar cenas da infância, episódios marcantes que a memória não apagou, e a presença constante da avó. No fundo, essa pulverização no discurso das memórias subjectivas do narrador sinaliza a impossibilidade de seleccionar as mais marcantes, de as resumir, o que é corroborado pelo recurso intencional às reticências para marcar a dificuldade de tudo dizer.

Essa sequência de episódios evocados é bruscamente interrompida no momento em que o discurso verbal, de forma directa mas simultaneamente plurissignificativa, anuncia: “Uma vez voltei e ela não estava lá!!”. O advérbio de lugar remete o leitor de imediato para a ideia de casa – a casa da avó onde o sujeito foi tão feliz – , mas a opção ilustrativa – a representação icónica de uma janela fechada – é altamente produtiva do ponto de vista semântico-simbólico, pela pluralidade de leituras que potencia.

Após essa imagem, de uma força perlocutória e de uma eficácia comunicativa evidentes, existe apenas o silêncio de uma página vazia, somente preenchida pela tonalidade ocre que serve de pano de fundo ao discurso verbal em todo o livro. O silêncio é, contudo, eloquente e comunicante, dizendo muito mais do que qualquer palavra nesse momento de verdadeira intensidade dramática. À direita, a sugestiva e polissémica ilustração – representando céu e mar – desafia o leitor a aventurar-se pelos caminhos do inefável, auxiliando-o a desocultar o que propositadamente ficou por dizer. A imagem, neste caso, impõe-se de forma soberana sobre o texto, substituindo-o, ultrapassando-o até. Aliás, o próprio autor se refere a essa passagem da obra sublinhando a dimensão semântica de que a imagem se reveste: “Limitei-me a contar o que naquele dia vi: a persiana da janela descida, ilustração perfeita do que estava a acontecer, e que me limitei a reproduzir. Falei pouco porque estava lá a imagem para dizer o resto”[2].

A partir daqui, a narrativa pictórico-verbal prossegue (e termina) dando conta de que “Muitos anos se passaram” desde esse dia, mas que, apesar disso, o sujeito da enunciação continua a sentir uma profunda saudade da avó. A estratégia plástica encontrada para representar o Eu que se inscreve no discurso verbal (e que conduz todo o fio narrativo) é, a meu ver, de grande produtividade semântica. Na verdade, ao representar um adulto, de costas, sentado a uma secretária, num ambiente intimista e em atitude de recolhimento e de introspecção, presumivelmente no seu local de trabalho, a ilustração sugere uma identificação provável entre narrador e autor, porque o sujeito representado é um sujeito que se deduz ter sido o autor das palavras que surgem na última página – “Fazes-me falta”. A ilustração complementa e interpreta, portanto, o discurso verbal, ampliando sentidos, trazendo “as imagens que habitam por detrás das palavras para a boca de cena” (Maia, 2002: 3).

Em síntese, podemos concluir que, neste álbum, o dialogismo entre a componente verbal e a pictórica potencia o surgimento de uma atmosfera poética que favorece a unidade estética e semântica da obra. Se, como me parece evidente, o texto obedece a uma lógica de economia e simplicidade que contrasta com a ilustração, muito sugestiva e abundantemente enriquecida com elementos pictóricos não explicitados pelo discurso verbal, também não deixa de ser verdade que essas duas linguagens artísticas mantêm entre si uma relação de complementaridade e de interdependência discursiva que se afigura imprescindível na formação estético-literária do potencial receptor infantil, permitindo-lhe efectuar leituras plurais e significativas.

Na verdade, a ilustração, em perfeita consonância com o texto (verbal, entenda-se), não se limita a traduzir ou a explicar o legível, até porque, como refere Maia (2002: 3), “ela não lida com o legível mas com o invisível, com aquilo que se esconde atrás das linhas do texto e permanentemente se oferece e escapa aos sentidos”: a ilustração interpreta, recria visualmente o código linguístico, iluminando-o, complementando-o, enriquecendo-o, interagindo com ele e estabelecendo com ele uma relação de profunda coesão estética e semântica.

Não será, por isso, por mero acaso que este magnífico álbum para crianças apresenta um formato invulgar, de grandes dimensões: trata-se, no fundo, de acentuar a ideia que perpassa toda a obra – a de que a saudade daqueles que amamos e que um dia vimos partir é muito grande. Tão grande como este livro.

Em suma, Um Avô Inesquecível e O Livro da Avó, pela forma poética como abordam a temática da perda, pela qualidade dos textos e das ilustrações, pela eficácia comunicativa que resulta da profunda coerência intersemiótica entre as duas linguagens artísticas – verbal e gráfico-plástica –, e ainda por abrirem múltiplas hipóteses interpretativas que decorrem da natureza plurissignificativa dos textos e das imagens, apelam à sensibilidade artística e à inteligência emocional da criança, seduzindo e provocando deslumbramento.

 

Bibliografia

CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1994), Dicionário dos Símbolos, Lisboa: Teorema.

MAIA, Gil (2002), “O visível, o legível e o invisível”, em Malasartes, nº 10, Dezembro, pp. 3-8.

MERGULHÃO, Teresa (2008), “Relação texto-imagem no livro para crianças: uma leitura de Bernardo Faz Birra e de Quando a Mãe Grita…[on line] [http://www.casadaleitura.org] Consulta: Maio de 2010.

SILVA, Luís (2007), O Livro da Avó, Porto: Afrontamento.

— (2010). Entrevista [on line][http://rascunho.iol.pt/artigo.php?id=1992] Consulta: Maio de 2010.

WESTERA, Bette (2005), Um Avô Inesquecível, Lisboa: Livros Horizonte.