Claudia Mendes

Nos livros infantis ilustrados de Roger Mello, uma viagem pela diversidade cultural brasileira

Claudia Mendes

Mestranda em Artes Visuais (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

(cacaumendes@gmail.com)

 

Resumo: A ilustração brasileira de livros infantis reflete o processo de consolidação de uma linguagem nacional, incorporando e miscigenando expressões da cultura popular às tradições das artes plásticas. Contrabalançando a hegemonia das mensagens visuais estereotipadas da indústria cultural, a rica diversidade cultural brasileira está presente na obra de muitos artistas contemporâneos, sendo Roger Mello um dos mais destacados. Examinaremos cinco livros onde este autor de dupla vocação compartilha com os jovens leitores seu interesse e emoção pela cultura popular, por meio de narrativas verbais e visuais que se enriquecem mutuamente.

Palavras-chave: livro infantil, ilustração, diversidade cultural.

 

Abstract: Brazilian children books illustration reveals the consolidation of a national language, that incorporates and mixes popular culture to traditional beaux arts. As a counterpoint to stereotyped visual messages from mass culture, many contemporary artists portray in their works the rich brazilian cultural diversity, being Roger Mello one of the most proeminent among them. We’ll examine five books where this author (that is both a writer and an illustrator) shares his interest and emotion about popular culture with his young readers, creating textual and visual narratives in a mutually enrichening dialogue.

Keywords: children book, illustration, cultural diversity.

 

Num país como o nosso, meu caro amigo,

construído na desigualdade social e nas mentiras políticas,

o bom livro para a criança e para o jovem é,

não tenho dúvida, um projeto de nação.

Nilma Lacerda

 

No universo contemporâneo da produção cultural para crianças no Brasil, o livro ilustrado destaca-se como produto industrial que permite a expressão de conteúdos regionais, constituindo um possível contraponto à massificação da cultura globalizada. Para os jovens leitores, ele pode desempenhar um papel importante na formação de uma identidade cultural que leve em conta a diversidade brasileira, composta por tantas manifestações regionais que não encontram expressão em outros produtos da cultura oficial e de massa.

Para Rui de Oliveira[1], a leitura consciente e participativa de palavras e imagens é um ato de resistência cultural e social e um elemento de afirmação da diversidade em um contexto de globalização massificante da cultura:

 

Vivemos uma época de vulgarização da palavra, acrescida da massificação mercantilista e ideológica da imagem. Nestes tempos, mais do que nunca o livro continua sendo um elemento de afirmação da individualidade. Ler de forma consciente e participativa a palavra e a imagem constitui, acima de tudo, um ato de resistência cultural e social (Oliveira, 2008: 44)

 

Como expressa com muita propriedade o também ilustrador, escritor e pesquisador Ricardo Azevedo (s/d), que desenvolve um extenso trabalho de pesquisa e criação de narrativas autorais inspiradas na cultura popular, a grande maioria da população brasileira (cerca de 80%) compartilha da “complexa e heterodoxa visão de mundo representada pela cultura popular”, no entanto desprezada pelo discurso da cultura oficial com que as crianças têm contato marcante quando chegam à escola.

Não apenas o discurso da cultura oficial, mas também os produtos da cultura de massa excluem o conhecimento e a visão de mundo da cultura popular. Neste contexto, o livro infantil representa um importante aliado do saber popular por contar, entre os profissionais envolvidos em sua cadeia produtiva, com “homens de cultura” (Eco, 2001) que há muito estão conscientes da importância de contemplar a diversidade brasileira em suas criações (basta lembrar do “pai fundador” da literatura infantil brasileira, Monteiro Lobato, e seu Sítio do Picapau Amarelo).

 

O livro infantil e a cultura popular

A cultura popular não só é muito bemvinda no livro infantil, como está em sua gênese: a literatura infanto-juvenil surge no século XVII com a fixação de narrativas populares, da tradição oral camponesa da Europa medieval, nos famosos Contos de Fadas, sendo Charles Perrault, os irmãos Grimm e Hans Christian Andersen os mais conhecidos escritores. As temáticas populares sempre encontraram grande receptividade no livro infantil brasileiro, destacando-se, além das referências no Sítio do Picapau Amarelo, de Monteiro Lobato, os registros de Luís da Câmara Câmara Cascudo em Contos tradicionais do Brasil (2004), publicados originalmente em 1946 e republicados regularmente até hoje, e ainda as pesquisas e recontos de Ricardo Azevedo e Ângela Lago, entre outros, no contexto atual.

Especialmente no campo da narrativa visual, destacamos um movimento protagonizado por ilustradores brasileiros, a partir dos anos 1990, em prol do reconhecimento de uma linguagem própria e sua valorização no cenário da arte internacional (como a Bienal de Ilustração de Bratislava) – situação descrita com muita propriedade pela escritora Ana Maria Machado[2] no prefácio do livro de Rui de Oliveira (2008: 16), já mencionado.

Um dos integrantes deste grupo é o ilustrador Roger Mello (1965-), indicado pela seção brasileira do IBBY, a Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – FNLIJ, para concorrer ao prêmio Hans Christian Andersen em 2010 e único não-europeu entre os 5 finalistas. Roger é também escritor e dramaturgo, e acumula numerosos prêmios nos muitos campos onde atua. Em 20 anos de carreira (1990-2009), ilustrou quase cem livros, sendo 19 de sua inteira autoria (texto e imagem), e neles nota-se um grande interesse por temáticas brasileiras: festas, lendas, religiosidade, artesanato, brinquedos e brincadeiras, animais, plantas, tipos humanos, ocupações. Entre as muitas influências que identificamos em suas ilustrações, saltam aos olhos as cores tropicais e a arte popular, numa linguagem que incorpora elementos significativos do imaginário brasileiro.

 

O olhar de Roger Mello sobre culturas populares vem de longe. Vem da infância, na cidade de Brasília, onde nasceu. E como um menino criado em uma cidade com arquitetura futurista e moderna se tornou autor de histórias sobre nossas raízes? Brasília, por ser uma cidade muito nova, reúne gente do Brasil inteiro propiciando a convivência de várias culturas do país e que são muito diferenciadas. Além disso, a cidade foi criada dentro do estado de Goiás, onde o folclore é extremamente vivenciado. [...] A relação estabelecida [com a cultura popular] é a do fascínio e da admiração: “O que eu quero com os meus livros é dividir um pouco esse meu olhar que é um olhar emocionado e, de certa maneira, estrangeiro, porque a gente consegue ser um pouco estrangeiro dentro do nosso país” (Leiabrasil, s/d).

 

Narrativas visuais da diversidade brasileira

A trajetória de vida de Roger Mello, entre pessoas e lugares tão diversos, formou-lhe o gosto pelas viagens e por contar histórias para compartilhar suas multifacetadas visões de mundo. Tendo no livro ilustrado seu mais destacado meio de expressão, notamos em suas obras traços característicos da cultura brasileira – a diversidade e a miscigenação – presentes tanto nos temas que aborda quanto nos estilos que emprega para representá-los. Estes conceitos estão bem representados nos livros Uma história de Boto-vermelho, Maria Teresa, Bumba meu boi Bumba,Cavalhadas de Pirenópolis e Nau Catarineta, que veremos a seguir.

Uma história de Boto-vermelho (1995)

O boto-vermelho, parente dos golfinhos, é um peixe que habita os rios da região amazônica e encontra-se ameaçado de extinção devido à pesca predatória. Seu nome deve-se à cor rosada de sua pele, que lembra a da pele humana. Na lenda, ele é um ser mágico que se transforma em moço bonito e encanta as moças com seus modos sedutores (são muitos os “filhos do boto” na região). Inspirado nesta lenda, Roger Mello cria uma narrativa autoral onde duas irmãs salvam o boto de um inescrupuloso pescador. As ilustrações mostram um realismo figurativo característico da fase inicial do artista, logo abandonado em favor de uma linguagem multifacetada, enriquecida por referências variadas das artes visuais, como veremos nos próximos livros.

Maria Teresa (1996)

Maria Teresa, a protagonista da história, é uma carranca (escultura antropomórfica posicionada na proa das embarcações para afastar os maus espíritos) típica dos barcos que navegam pelo rio São Francisco. Este rio corta o sertão nordestino, atravessando vários estados e levando água a regiões castigadas pela seca, e é elemento importante do imaginário regional. Maria Teresa narra em primeira pessoa, em versos rimados, as muitas histórias que presencia à medida em que ela, “seu” barco e o barqueiro viajam pelo rio: o vapor que desce o rio junto com os barcos e suas carrancas; a moça na janela olhando a paisagem; as casinhas coloridas de cidades, vilas, povoados que passam longe na paisagem; elevações de terra nua a perder de vista, salpicadas aqui e ali pela vegetação do sertão; as aves de arribação; os peixes em cardumes coloridos no fundo do rio; a filha do coronel que foge com o filho do pescador; a festa de casamento coletivo; o medo de assombração; o monstro que ameaça os navegantes; o socorro da santa padroeira; as ladainhas mágicas; a carranca protetora afastando o perigo; as histórias de pescador; a festa do Divino; a congada; os barcos enfeitados de bandeirinhas coloridas batizados com nomes de mulheres; as águas barrentas do rio; o céu sem nuvens explodindo em cores quentes como o clima.

Também na narrativa visual Roger Mello incorpora elementos da cultura popular, sendo o mais marcante o emprego de elementos da arte naïf, como as cores vibrantes, a profusão de detalhes, a perspectiva mostrando simultaneamente múltiplos pontos-de-vista, bem como elementos do léxico da arte popular, como as molduras de casinhas e grafismos, a figura humana em formas simplificadas, as fisionomias despersonalizadas. O sucesso deste livro deu origem a uma série sobre cultura popular, formada por Bumba meu boi Bumbá e Cavalhadas de Pirenópolis.

Bumba meu boi Bumbá (1996)

Bumba meu boi Bumbá é uma narrativa autoral inspirada nos folguedos do boi, que existem em várias versões pelas diferentes regiões do Brasil. Neste livro, Roger faz um reconto da história, selecionando alguns elementos e excluindo outros (como os personagens Bernúncia e o Kazumbá, de ocorrência mais limitada).

Na narrativa visual, a influência da arte popular mais uma vez se faz presente, desta vez misturada a outros estilos, como a optical art. A partir da sua pesquisa, Roger decidiu desenhar o seu próprio boi, que não necessariamente guardasse nem evitasse semelhanças com determinados bois brasileiros.

Cavalhadas de Pirenópolis (1997)

Cavalhadas de Pirenópolis baseia-se nas célebres comemorações que acontecem nesta cidade durante a Festa do Divino Espírito Santo: “As cavalhadas sempre fizeram parte da minha vida. Pirenópolis fica perto de Brasília, minha irmã tem casa lá, eu ia para lá sempre. É linda esta festa, impressionante” (Mello, 2010). O menino Arlindo ganha uma máscara de presente de um cavaleiro mascarado (personagem típico da festa) e com ela consegue enfrentar o carcará (ave de rapina da região) e levar uma flor para sua amada Lucinda. Tendo a festa como eixo articulador, nos acontecimentos que marcam os encontros e desencontros entre Arlindo, o carcará e Lucinda, aparecem também outras particularidades da região: domingo de Cavalhadas, mascarados pelas ruas, cavaleiros em trajes enfeitados fazendo seu “trote-dança”, enfrentamento entre os mouros em vermelho e os cristãos em azul, a quadra, a igreja matriz, a Banda do Couro, o pertencimento familiar (“Lucinda filha de Dona Isadora”), a doceira “assuntando” na janela, na cozinha os doces de frutas da região (figo, mamão verde, mamão maduro, buriti...), a flor do cerrado, as ruas calçadas com mosaico de pedras, cadeiras na calçada, muitos pássaros (jacutinga, jacu, perdiz, anu-preto...), a Serra dos Pireneus, paisagens verdejantes, por-do-sol multicolorido (azul, vermelho, roxo). Nas ilustrações, são abundantes as referências à arte popular.

Nau Catarineta (2004)

 

Em Nau Catarineta Roger retoma a temática das festas populares. Este livro nasceu também de um contato prévio com a festa durante a infância, que o impressionou. A partir daí, o autor empreendeu uma longa e aprofundada pesquisa sobre a narrativa, até chegar à sua própria versão:

 

Sempre quis ver a minha versão dessa importante festa popular e do seu tex­to. Algumas pessoas já trabalharam esse tema, mas eu queria criar a minha leitura visual, já que, na medida do possível, estou preservando os textos. Faço uma colagem dos textos, desde a versão de Garret, até os textos que ainda são brincados pelo país. Eu vi a festa quando era criança e fiquei muito impressionado, mas não tinha contato freqüente com essa festa, nem com as outras – as Folias de Reis, as Manifestações dos Bois (as Cavalhadas de Pirenópolis sim, eu morava ali perto) (Mello, 2003: 26)

 

Na narrativa visual, além das cores vibrantes características da palheta empregada por Roger Mello e pelos artistas populares, há a influência de tábuas votivas sobre naufrágios, do século XVIII, e das obras do artista popular Nhô Caboclo, expostas no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro.

 

Referências

AZEVEDO, Ricardo, Entrevista para o site da ONG Leia Brasil [online] http:// www.leiabrasil.org.br/index.php?leia=depoimentos/depoimento_ricardo_azevedo. Acesso em 15 jan. 2010.

CASCUDO, Luís da Câmara (2004), Contos tradicionais do Brasil, São Paulo: Global.

ECO, Umberto (2001), “Cultura de massa e níveis de cultura”, in Apocalípticos e integrados, São Paulo: Perspectiva.

LEIABRASIL. Um olhar sobre as culturas populares [online] http://www. leiabrasil.org.br/index.php?leia=depoimentos/depoimento_roger_mello. Acesso em 15 jan. 2010.

MACHADO, Ana Maria (2008), “Fugindo de qualquer nota”, in Rui OLIVEIRA, Rui (2008).

MELLO, Roger (1995), Uma História de Boto-Vermelho, Rio de Janeiro, Salamandra.

— (1996),Bumba meu boi Bumbá, Rio de Janeiro: Agir.

— (1996), Maria Teresa, Rio de Janeiro: Agir.

— (1997), Cavalhadas de Pirenópolis, Rio de Janeiro: Agir

(2003), “Entrevista”, in Teresa KIKUCHI, Diário de bordo: uma viagem pelos desenhos de Roger Mello, trabalho de conclusão de curso, São Paulo: USP.

— (2004), Nau Catarineta, Rio de Janeiro: Manati.

— (2010), “Entrevista concedida por telefone a Claudia Mendes”, Rio de Janeiro, 22 jan.

OLIVEIRA, Rui (2008), Pelos Jardins Boboli: Reflexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens, Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

 



[1] Ilustrador, escritor e pesquisador brasileiro; ganhador de inúmeros prêmios nacionais e internacionais; indicado ao Prêmio Hans Christian Andersen em 2006; membro do júri internacional da Bienal de Ilustração de Bratislava em 2005.

 

[2] Membro da Academia Brasileira de Letras e ganhadora de inúmeros de inúmeros prêmios nacionais e internacionais, entre eles o Prêmio Hans Christian Andersen em 2000.