Vera Teixeira de Aguiar

Literatura juvenil na voz das minorias

Vera Teixeira de Aguiar

PUCRS – Brasil

(veaguiar@portoweb.com.br)

 

Resumo: Esta comunicação apresenta resultados parciais de uma pesquisa que tem por meta o estudo da literatura juvenil brasileira, em termos de conceituação, história, levantamento exaustivo de autores, obras e temas e avaliação crítica da produção. Nesse panorama, insere-se a reflexão sobre o tratamento do homossexualismo por essa literatura. Discutimos aqui a questão a partir da análise das obras Sapato de salto, de Lygia Bojunga, e Cartas marcadas: uma história de amor entre iguais, de Antonio Gil Neto e Edson Gabriel Garcia, levando em conta o papel do narrador como articulador da proposta ficcional que se dá ao leitor, autorizando uma postura frente ao tema em questão.

Palavras-chave: literatura juvenil, minorias, homossexualismo.

 

Abstract: This paper presents the partial results of a research whose objective was the study of the Brazilian literature for the young, in terms of concept, history, exhausting enlisting of authors, pieces and themes and critical valuation. In this perspective, we present a reflection on how homosexuality is dealt with in this kind of literature. We discuss this matter using the analysis of the pieces Sapato de Salto, by Lygia Bojunga, and Cartas Marcadas: uma história de amor entre iguais, by Antonio Gil Neto and Edson Gabriel Garcia, considering the narrator’s role as an articulator of the fictional proposal made to the readers, which allows them to have a position towards such matter.

Keywords: Literature for the young, minorities, homosexuality.

 

Uma das questões mais pertinentes à literatura contemporânea é aquela que diz respeito à especificidade dos textos para a juventude, segmento social que se torna cada vez mais visível a partir da segunda metade do século XX. Se a infância, enquanto parcela significativa do todo social, instaura-se com o advento da modernidade e, a partir dali, providenciam-se as práticas e os objetos culturais a seu favor (entre eles, a literatura infantil), a juventude só passa a existir muito mais tarde. No Brasil, até mais ou menos 1950, as crianças saem da infância para o casamento ou trabalho, isto é, para as responsabilidades da vida adulta. Em síntese, os jovens, como os conhecemos hoje, não existem. São os fatores relacionados ao mundo pós-moderno, entre eles a industrialização acentuada e a aceleração da sociedade de massa e da globalização, seguidas da enorme expansão dos meios de comunicação, que dão vez e voz a essa camada da população, que passa a consumir sem ainda produzir, fazendo valer seus desejos. Nesse contexto, surge uma literatura destinada aos jovens, disposta a atender seus interesses, representar simbolicamente sentimentos e questões existenciais que os afligem e falar a sua linguagem.

Tal produção se desenvolve no cenário da literatura em geral, valendo-se, portanto, das representações e dos recursos estéticos consagrados, ao mesmo tempo em que parece marcar um leitor específico, que vai se desenhando no texto. Esse leitor implícito, que está afinado com os jovens que vivem no mundo de hoje, traz, assim, para a diegese, a voz desse novo público. Sabemos, no entanto, que a juventude não é homogênea, ao contrário, busca lugares sociais diferenciados e nem sempre correspondentes àqueles definidos pelos valores tradicionais. Resta à produção literária, pois, acolher as expressões das variadas minorias que compõem o panorama atual. Entre elas, está a daqueles que fazem opções homossexuais e têm de participar das trocas comunicativas, mas encontram, as mais das vezes, resistências do grupo social mais amplo. Discutir esse fenômeno, verificando que espaço a literatura vem dando a essas manifestações, é o que propomos neste trabalho. Para tanto, vamos examinar as obras Sapato de salto (2006), de Lygia Bojunga, e Cartas marcadas: uma história de amor entre iguais (2007), de Antônio Gil Neto e Edson Gabriel Garcia. Temos, pois, questões de identidade e especificidade de uma literatura para os jovens, no que se refere ao lugar ocupado pela minoria homossexual, em termos de expressão estética e ideológica.

A representação literária das vivências humanas dessa fração da juventude pode ser estudada em histórias que contemplam personagens assim definidas e compostas a partir de determinado comportamento do narrador. É sua atitude, enquanto elemento ficcional que articula a narrativa como um todo orgânico e coerente, que revela os procedimentos adotados para conceber e avaliar modos de ser e viver. Além disso, importa-nos levar em conta, na construção textual, a figura do leitor implícito na obra, também ele um ente do universo da ficção, com o qual o narrador dialoga. Em nosso caso específico, desenham-se aqui os contornos de um jovem, possível elemento de ligação entre o mundo narrado e a realidade do leitor histórico.

Sapato de salto apresenta um feixe de casos em que cada personagem é o centro de sua própria história e todas juntas falam de pobreza, suicídio, prostituição, abandono, estupro, abuso sexual de criança, assassinato e homossexualismo, para ficarmos com os temas mais violentos. Há um narrador onisciente, que controla toda a narrativa, sabe tudo o que se passa na cabeça e no coração de seus heróis e anti-heróis e informa o leitor. Nesse processo, ele se coloca ao lado do receptor, em uma postura cúmplice de quem pensa e sente da mesma maneira, com igual nível de conhecimento. Senão, vejamos estes exemplos:

 

E agora lá está ele sentado no barranco que margeia o rio, se ocupando em preparar isca, mas o olho fugindo a toda hora pra picada estreita onde o Joel vai aparecer; a imaginação fabricando cena atrás de cena do encontro que vai acontecer; o pensamento atarefado em tudo que é palavra que vai povoar as cenas, “puxa, Joel, quase nove e meia! já tava achando que você não ia me perdoar!” (p. 157).

 

Ele só me ama naquela hora! aí ele não para de me alisar e de me olhar... Mas é só ele gozar e pronto, volta lá pros livros dele. A única coisa que ele quer é ficar trancafiado, lendo um livro atrás do outro. Bom, mas eu também não precisava ter chamado ele de intelectual de merda (p. 158).

 

O que observamos nas passagens reproduzidas é uma narrativa que assume o ponto de vista do jovem, fiel a sua visão de mundo e sua capacidade cognitiva. O narrador reproduz o discurso do jovem, mantendo-lhe o tom e a linguagem, a bem da espontaneidade de expressão. O resultado é um texto que revela os desencontros da relação entre o adolescente, que se inicia na vida adulta, e o intelectual experiente, com uma bagagem de leitura impensável para o outro, e a percepção que o mais novo tem da situação. No entanto, o desenrolar da trama mostra que a aprendizagem do menino não significa o abandono da opção sexual feita, mas o amadurecimento que o vai levar a um futuro mais feliz, em que será capaz de enfrentar as reações da sociedade conservadora, no livro representada pela figura paterna.

Cartas marcadas: um amor entre iguais, por sua vez, gira em torno de um único tema: as dificuldades de um adolescente em assumir sua preferência pelo mesmo sexo, frente aos preconceitos dos colegas, da família e dos amigos. Na verdade, a descoberta dá-se pela declaração de amor de um companheiro de escola, e o que está em jogo, em primeiro lugar, é o medo gerado pelos sentimentos negativos sobre o assunto que ele introjeta a partir do mundo em que vive. A obra é construída segundo a ótica de diversas vozes, em cartas, bilhetes, notícias, depoimentos, páginas avulsas e, sobretudo, pela presença de um narrador onisciente, que conduz a espinha dorsal da narrativa e a orienta para a decisão final da personagem central, dirigindo todas as falas textuais. Acontece que, nesse caminho, sua palavra se sobrepõe à do jovem, denunciando um predomínio do adulto, como os fragmentos seguintes exemplificam:

 

Sei que é muito difícil para a gente se entender e perceber todos os desejos que temos. Há situações na vida que nos obrigam a tomar atitudes que não sentimos de fato e não correspondem à nossa realidade mais íntima. Imagino como você deve estar se torturando. Não precisa virar a cara para mim, nem fingir que não me conhece. Nem tampouco fugir dessa. Afinal, nos conhecemos bem e somos amigos. Das horas boas e ruins... Na mais última instância, colegas, conhecidos. Você sabe bem... (p. 13).

 

No pensar de Duda, já havia selecionado alguns itens para suas leituras da tarde na biblioteca. Algo sobre Fernando Pessoa parecia lhe despertar o interesse, algo que parecia esconder seu furor sexual, homossexual, pansexual em seus heterônimos ou coisa assim. Algo também sobre mitos, essas alegorias sobre os sentimentos humanos mais profundos (p. 43).

 

As citações dão conta de um nível de maturidade e de um grau de conhecimento muito além daqueles já conquistados pelos adolescentes. Na primeira, as afirmações do amigo de Duda (“há situações na vida que nos obrigam...”) dizem respeito a uma experiência vivencial e, principalmente, a uma capacidade de refletir sobre o passado e dele retirar lições que extrapolam o mundo jovem, centrado no presente e no futuro. Igualmente, a segunda citação reporta as informações sobre o poeta português e sobre interpretações de sua obra que não estão ainda ao dispor do novo leitor. Portanto, o que vemos é um narrador adulto que conduz todas as decisões narrativas de acordo com suas vivências, atribuindo-as às personagens. É de nos perguntarmos, então, do ponto de vista temático, até que ponto a questão homossexual é de fato resolvida pelo jovem.

As duas obras, próximas em data de publicação, sintonizam também quanto ao interesse por um assunto até há pouco tempo tabu na literatura juvenil, ela mesma bastante recente como produção editorial de sucesso. A postura crítica de ambas busca esclarecer e afastar o preconceito quanto às relações homoafetivas, salientando o valor dos sentimentos humanos enquanto tal. Portanto, há um caráter emancipador nos textos, que merece ser salientado; o que os afasta, contudo, é o modo como concebem o diálogo entre as gerações e o lugar do jovem na sociedade atual. Tais posturas determinam comportamentos narrativos diferentes, que indicam soluções, em parte, divergentes: Lygia Bojunga, em Sapato de salto, aposta na liberdade de escolha consciente do jovem pela orientação sexual melhor para si; Antonio Gil Neto e Edson Gabriel Garcia, em Cartas marcadas: uma história entre iguais, dão as mãos ao protagonista, levando-o à melhor opção segundo a bagagem existencial e cultural do narrador adulto.

 

Referências

BOJUNGA, Lygia (2006), Sapato de salto, Rio de Janeiro: Casa Lygia Bojunga.

GIL NETO, Antonio, e Edson Gabriel GARCIA (2007), Cartas marcadas: uma história de amor entre iguais, São Paulo: Cortez.